quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Amigo é coisa pra se guardar... - Parte II

Francisco Marques de Oliveira
("seu" Francisco)

Falar dos meus amigos não é tarefa difícil para mim. Mesmo sobre aqueles que já pegaram o último trem e partiram para sempre. Dos que já se foram, nessa época do Natal eu costumo lembrar com maior freqüência do "Coleguinha" - era assim que eu o chamava - que partiu exatamente naquele 24 de dezembro de 2003. "Seu" Francisco, como era tratado pelos demais conhecidos, trabalhou muitos anos na Biblioteca Pública Municipal Dr. José Pacheco Dantas, em Ceará-Mirim/RN. Foi uma espécie de "Severino" (aquela do humor que é um verdadeiro quebra galho), só nunca possuiu a malícia do personagem.  Até comentávamos sobre o respeito que ele tinha com todos nós, fosse homem ou mulher. Mesmo gostando (e muito) de apreciar uma "branquinha", o que quase sempre lhe fazia viver fora do ar, ele nunca desrespeitou ninguém. Por tudo isso "Chiquinho" - esse era outro nome que lhe dava Graça Galega, também companheira de trabalho - era querido por todos.
Nas datas festivas, lá estava ele, logo cedo no batente, trabalhando feito um doido, fazendo de tudo. Ninguém sabia onde ia arranjar tanta disposição. Aquele homenzinho aparentemente frágil na hora da batalha se transformava num gigante, e dava conta do recado. Quando tudo terminava, retomava a maratona para por tudo em ordem outra vez. Era uma máquina! Para se ter uma idéia, ele era encarregado da limpeza das portas e janelas, de encerar o velho piso de taco, de fazer a cobrança dos livros não devolvidos pelos usuários, e, principalmente, cuidar do belo jardim da Biblioteca. Hoje quando vejo funcionários "queixudos", sem querer cumprir com as suas obrigações, eu me lembro das virtudes do meu amigo.

Pode-se dizer que "seu" Francisco era o nosso xodó. Um amigo querido, mesmo. A sua simplicidade contagiava a todos nós. Tanto que era sempre perdoado quando cometia algum deslize provocado pelo excesso da "birita". Certa vez, estávamos esperando uma equipe de alunos da UFRN que vinham visitar a Biblioteca, era um dia de sábado. Como responsável pelas chaves, e era sempre ele quem primeiro chegava, confiamos no compromisso de também chegar cedo naquele dia. Mas era sábado, e parece que a noite foi longa pra Chiquinho. Chegaram os estudantes e nada do amigo. Resultado: tive que pular o muro e abrir um ferrolho para que a turma entrasse e apreciasse as instalações daquela casa, apenas no alpendre e jardim. Quando estávamos no meio da conversa, lá vem o coleguinha, meio fora de órbita, olhando admirado para aquela aglomeração já do lado de dentro do seu posto de trabalho que ele ficara de abrir os portões. O amigo empalideceu. Se ainda estava tocado pelo álcool, o efeito desse passou na hora. Levou uma bronca daquelas da diretora que, como sempre, depois o perdoou.


Noutra vez, nós estávamos na praia de Zumbi, na casa de D. Janete Medeiros, numa confraternização de final de ano. Lá pras tantas, depois de já termos bebido bastante, dessa vez, claro, eu acompanhei o amigo, eis que aparece o então prefeito Dr. Roberto Varela. Ficamos todos surpresos com a sua presença, se bem que ele sempre participava desses encontros, fosse onde fosse. Naquele alvoroço para receber o visitante ilustre, Chiquinho também quis cumprimentar o "home". Se levantou e começou a repetir a frase: "Meu prefeito! Meu prefeito!" E tentava se aproximar do prefeito, mas no estado em que se encontrava, quanto mais se esforçava para caminhar para frente, mais ia para trás. Até que a gente o convenceu de ficar sentado. Aí o prefeito falou com todo mundo e seguiu o seu destino. Ficamos lá, desfrutando da presença daquele amigo de todas as horas.


Sua dedicação ao jardim da Biblioteca merece uma atenção especial. Basta lembrar de como ele era quando estava sob a sua guarda e no que se transformou depois. Esse cajueiro da foto, por exemplo, foi ele quem plantou e talvez seja hoje a sua única herança que ainda resta ali. Pois saibam vocês que até mesmo essa árvore foi ameaçada de corte, ao que eu bati o pé e corri atrás de justificativas para salvá-la. Felizmente as razões expostas foram acatadas e o cajueiro sobreviveu. Por tudo isso nós funcionários, principalmente os mais antigos, sentimos muito a falta de "seu" Francisco. Aquele homem bom. Em seus últimos dias de vida ele estava muito empolgado com um "atrasado" que havia recebido. Na euforia daquele momento, o coleguinha tomou todas, passou do limite. Seu estado de saúde que já andava complicado se agravou. Foi hospitalizado mas não resistiu. D. Maria Brito de Oliveira, sua esposa, e seus filhos Josafá Brito de Oliveira, Josenilton Brito de Oliveira e Josivan Brito de Oliveira, têm hoje que conviver com essa realidade, também para eles, mais presente às vésperas do Natal do Senhor. Naquele dia, ao receber a notícia da morte do amigo, pra não morrer de tristeza pus-me a escrever algo para ele e em forma de poema (que agora transcrevo mais uma vez) tentei passar um pouco do que ele representou e representa para todos nós que desfrutamos da sua companhia. Hoje ainda agradeço ao amigo jornalista Carlos Antunes por ter publicado na época, em jornais da cidade, essa singela homenagem. Era preciso, já que as pessoas simples enquanto produzem, costumam ser lembradas pela sociedade que carece dos seus préstimos, para logo em seguida, no fim do caminho, serem postas ao esquecimento. Essa é a vida...

E agora, “colega”
Quem vai cuidar desse jardim?
Porque, bem ou mal
Era você que o fazia!

Quem vai perseguir aquelas formigas
Ou encher o tambor d’água?

As folhas secas do jardim ali vão ficar...
O “coleguinha” não está mais aqui para varrê-las
E aquele beija-flor, sempre que lá voltar
Sentirá a sua falta.
E como “as rosas não falam”,
Em cada flor que beijar
Vai lhe deixar um recado.


É...
O Velho Francisco se foi.
Às vésperas do Natal.
Um dos Três Reis Magos que partiu mais cedo,
Ou que, sem encontrar aquela estrela pra lhe guiar,
pegou o caminho de volta pra casa?!

Há tantos mistérios nessa vida.
As pessoas simples quando se vão
Deixam um vazio imenso.
É que na verdade elas são grandes demais
Mas quase ninguém percebe.

Agora o amigo cuidará do jardim do Senhor
Com a mesma dedicação e zelo
Com que fazia aqui.

Para nós seus amigos da Biblioteca
Restarão as saudades e as boas recordações
E aquela sensação de perda de uma obra rara
Quando virmos na estante das nossas lembranças
Um lugar vazio, causado pelo extravio
De um livro que já não há mais como repor.

Enquanto isso a gente vai tocando a vida em frente
É preciso ser assim...
Mas sentiremos sempre em cada planta e em cada canto
A presença do amigo
Nesse jardim agora tão vazio.

(Eliel Silva, 24/12/2003)

Fotos: Arquivo da família e Eliel Silva

2 comentários:

Pedro Torres da Rocha disse...

Caro Eliel. Lendo a história de Francisco fiz uma relação com um evento que a Câmara Municipal de nossa cidade promoveu esta semana para a entrega do título de cidadão cearamirinense a algumas pessoas pelos serviços prestados a nossa cidade. Entendo que está existindo uma verdadeira banalização em relação a essedessas pessoas título. A grande maioria da nossa população não conhece e não sabe o que muitos desses "cidadõas" fezeram por nosso povo. Aqueles que realmente merecem como por exemplo, Sr. Francisco, "Bigode de Arame"(que transpotava água naquele burrinho) e tantos outros, formam a grande massa dos nossos trabalhadores esquecidos. Por isso a minha indignação em relação à entrega desse título. Que a nossa Câmara Municipal tenha um olhar voltado também para trabalhadores anônimos que, assim como Sr. Francisco, trabalham honestamente para o progresso de nossa terra.
Um abraço e parabéns pela forma simples e correta como você escreve suas postagens.
PT SAUDAÇÕES!!!

Anônimo disse...

Valeu, Pedrinho! Concordo plenamente com tudo que você escreveu. E é por isso mesmo que vou continuar contando a história dessas "figuras" tão importantes em nossas vidas. Mesmo que isso não me dê tanto ibope, que aliás, não é esse o objetivo do blog, quero mesmo é falar dessa gente simples e tão nossa. É preciso sentir o cheiro desse povo. Homens e mulheres que, na luta do dia-a-dia, muito contribuiram para o progresso da nossa terra. Esses sim, são verdadeiros cidadãos cearamirinenses. Obrigado pela deferência ao blog! (Eliel Silva)