Ana Paula Padrão
(Publicado
originalmente na Revista ISTO É)
Tenho
muita saudade da máquina de escrever. Bater nas teclas com força e ouvir o tec,
tec, tec. No fim da linha empurrar o braço mecânico pra esquerda e começar de
novo. A, S, D, F, G. A, S, D, F, G.
Tenho
saudade do telefone de disco. Eu tinha uma prima que usava três dedos pra
discar os seis números. Ela tinha unhas longuíssimas cobertas de esmalte
vermelho e entre o indicador e o médio ainda segurava o cigarro. Elegantérrima.
Tenho saudades do tempo em que fumar não era politicamente incorreto, apenas fazia
mal pra saúde. E do cheiro do óleo bronzeador que também entrou na lista dos
vilões sociais. Óleo de urucum, Rayito de Sol e outros menos cotados.
Tenho
saudades da agenda de papel. Todos os telefones anotados com letra caprichada.
Tenho saudade até de perder tempo passando a agenda a limpo quando a lista de
amigos ficava maior que o número de páginas. Ou quando era preciso apagar
alguns nomes. Nunca deletá-los.
Tenho
saudade de fazer pipoca na panela. O milho estourava no óleo quente soltando
aquele cheiro de sala de cinema. Poc, poc, poc. Também sinto falta do ovo
batido em ponto de neve no braço. Sem parar pra não desandar a receita. E tenho
saudade da vitrola, da agulha e do vinil girando em três rotações: 33, 46 e 78.
Do chiado do velho LP, do drama de um disco arranhado.
Tenho
saudade da manga espada, buraquinho aberto na casca pra beber o caldo. Da
goiaba de vez colhida no pé, na primeira mordida vinha metade do bicho que
morava lá dentro. E do morango suculento e com gosto de morango. Os morangos de
hoje são lindos, mas não têm caldo nem sabor. Tenho saudade de esperar um mês
inteiro pela próxima edição do meu gibi preferido e de colecionar figurinhas no
álbum. Coladas com cola Tenaz. Cole e descole se for capaz.
E,
acima de tudo, tenho saudade de esperar uma semana inteira pra que as fotos
fossem reveladas. Ah, como eram bacanas as máquinas fotográficas não digitais e
os rolos de filme rebobinados. Saudade de chamar as coisas de bacanas. Saudade
de quando as lembranças não eram instantâneas.
Dito
isso, devo confessar que não sou muito boa de memória. Esqueço nomes e
fisionomias. Só decoro instantaneamente números e letras de música. E cheiros.
E sons. E dores. Mas lembro-me destas últimas pela sensação que produziram,
quase nunca pelos personagens que as provocaram. Hoje agradeço essa falha como
um dom.
Tenho
saudade do Neutrox amarelo, do pac man, da agenda Cassio, do Leite de Rosas, do
sabonete Phebo, chiquérrimo. E ter saudade não é querer ter tudo isso de volta.
É apenas a confortável sensação de ter idade pra ter saudade do que não está na
moda, do que já passou, do que não existe mais e ainda assim era bom
simplesmente porque me fazia bem. É ter experimentado todas as mudanças e ter
aprovado algumas, detestado outras.
Tenho
saudades do bom português, do romance bem escrito publicado em edição de capa
dura. Dos políticos que tinham vergonha de serem tachados de corruptos, ainda
que fossem. Dos eletrodomésticos que duravam tanto quanto um casamento, quase a
vida inteira. De andar de carro com a janela aberta. Ter saudade é um
privilégio.
Minha memória não é lá muito boa, mas é sábia. Guarda com nitidez
as delícias e arquiva os rancores em gavetas trancadas que eu nunca me lembro
de abrir.
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